Mais de 10 milhões de familiares e amigos dos 2,6 milhões de dependentes químicos em cocaína e crack no país enfrentam o martírio da codependência.
Por trás de um dependente químico, há pelo menos outras quatro pessoas que também precisam de tratamento, de acordo com a Federação de Amor-Exigente (FEAE), que reúne 920 grupos de apoio para familiares de usuários de drogas no Brasil e países vizinhos.
Chamadas de codependentes, essas pessoas que são afetadas indiretamente pela droga costumam viver em função do viciado, têm sentimento de culpa, baixa auto-estima e sentem-se úteis quando estão entregues aos problemas dele.
A codependência não figura no Código Internacional de Doenças (CID), explica Carlos Salgado, psiquiatra e conselheiro da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead).
Mas os sintomas se encaixam nas psicopatologias, capítulo 10 do CID. “Os codependentes têm, por exemplo, ansiedade e depressão.
Em caso extremo, a busca por prescrições para controlar o problema pode levar ao atoleiro de bendiazepínicos”, adverte o médico.
Em alguns casos, Salgado só trata o paciente se os codependentes também forem tratados. O médico adverte que a aura de sofrimento pode ir além da família e atingir amigos, colegas de trabalho e até o chefe do dependente.
“É possível atender o paciente sozinho, mas se tiver a presença da família, o resultado é mais efetivo”, diz.
Brasil: Dez milhões de codependentes Em todo o Brasil, 2,6 milhões de pessoas são usuárias de cocaína ou crack, segundo o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (Inpad), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Em outras palavras, o país tem mais de 10 milhões de codependentes destas drogas. A cada semana, 3.000 codependentes procuram a FEAE em busca de ajuda.
“Os codependentes são, em sua maioria, mulheres”, constata Arlete Lugo, 66, coordenadora da FEAE em Porto Alegre. “Elas se perguntam: ‘Onde foi que eu errei?’. A culpa vira justificativa para não fazer nada.”
Arlete lembra que, nos grupos de apoio, o foco é a mudança de atitude e a maior cooperação entre os familiares. “As participantes expõem suas angústias e medos nos encontros e falam coisas que não falariam na frente das sogras ou filhos”, diz Claudia Schossler Sá, 48, que fundou há um ano, em Porto Alegre, o Grupo de Esposas de Toxicômanos e Alcoolistas em Recuperação (Gestar).
O Gestar também prepara as mulheres para as visitas mensais às comunidades terapêuticas. Membro do Gestar, a estudante Andiara Almeida Telles, 20, visitou recentemente o namorado na na comunidade terapêutica Fazenda Senhor Jesus, em Viamão, a 44 km da capital gaúcha. Ele sofrera uma recaída depois de três anos de abstinência.
No local, Andiara se deparou com a cerimônia de graduação de sete internos, que tinham acabado de cumprir nove meses de tratamento.
A emoção entre os familiares transbordava.
“Naquele momento, comecei um novo ciclo de expectativa sobre a nova tentativa de recuperação do meu
namorado”, diz Andiara, que luta para reduzir a ansiedade diante do problema do parceiro. “Sofria quando ele
saía com amigos e não atendia o celular. Isso é doença.”
Como uma nova gestação
Os nove meses que o filho de 24 anos vai passar na Fazenda Senhor Jesus são encarados como uma gestação pela técnica de enfermagem Patrícia Leite do Amaral, 40.
“Eu estou engravidando de novo e disse a ele: ‘Estou do teu lado e não espero ter um aborto’”, lembra Patrícia.
Por causa da luta do filho contra o crack, Patrícia parou de trabalhar e assumiu os cuidados com a neta Isabella, de 10 meses, filha de Guilherme.
Uma semana depois que o jovem iniciou o tratamento na fazenda, o celular de Patrícia tocou de madrugada. Ela pensou que fosse a polícia ou o Instituto Médico Legal.
“O coração não relaxa. Era apenas minha mãe”, conta. Patrícia decidiu se tratar com um psiquiatra e frequentar um grupo de apoio enquanto a neta está na creche.
“Assumi o posto de mãe da minha neta e de dependente. A Patrícia mulher e profissional ficou de lado”, lamenta. “Mas não quero que meu filho se sinta culpado. Ele tem de lutar contra a doença que é o vício.”
‘A gente fica impotente’
O casal Patrícia Uchoa e Alexandre Carlos, ambos de 53 anos, perdeu a conta das internações do filho Rafael, 30.
“O uso de drogas é mais complicado para a família do que para o dependente”, diz Carlos.
Além dos pais, quatro irmãos, os avós paternos e maternos e a filha de 8 anos estão na “órbita” de Rafael.
“É como se um buraco se abrisse na sua frente. A gente fica impotente diante do vício”, desabafa a mãe.
Os pais perceberam a gravidade do problema quando o filho, viciado há mais de 15 anos, passou a “sumir” com objetos de casa para comprar crack. Mas Carlos ignorava a realidade e continuava a dar dinheiro ao filho.
“Em vez de uma atitude colaborativa, o pai adota uma ação que desorganiza as defesas do filho”, aponta o psiquiatra Carlos Salgado. “Isso acontece porque é difícil lidar com o problema.
O resultado é essa ambivalência: ao mesmo tempo em que sabe do problema do filho, o pai facilita o acesso ao dinheiro que
será usado para comprar drogas.”
A família, que já cancelou férias pagas para ir atrás de Rafael, assegura que hoje não deixa compromissos de lado quando ele sofre recaídas.
Patrícia conta que “deixou de viver a doença do filho”, mas fica alerta quando ele não atende o celular. “Não existe ex-pai ou ex-mãe”, diz ela. “Nunca vamos deixar de ser codependentes.”
Fonte:InfosurHoy