Uso de antidepressivos e estabilizadores de humor crescem entre crianças e adolescentes.

Somente no ano passado, foram vendidos no Brasil 42,3 milhões de caixas de medicamentos antidepressivos, estabilizadores de humor e ansiolíticos (que diminuem a ansiedade), o que gerou um movimento de R$ 1,85 bilhão – 16% a mais do que em 2011.

O aumento no número de diagnósticos e, consequentemente da prescrições de remédios, tem colocado em alerta especialistas e entidades para o fenômeno que, tanto no país quanto no exterior, já se convencionou chamar de “hipermedicalização” da população.

A preocupação se acentuou nos últimos anos com a produção de novas pesquisas e livros sobre o tema. Estudo divulgado neste ano pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por exemplo, revela que, entre 2009 e 2011, o consumo do medicamento metilfenidato – popularmente conhecido como Ritalina, um de seus nomes comerciais – mais do que dobrou no Brasil.

O remédio, usado no tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), tem ganhado espaço principalmente entre crianças e adolescentes. Somente no Paraná, o consumo do remédio na faixa entre 6 e 16 anos aumentou 118% no período estudado.

A Ritalina aumenta a atenção e controla os impulsos de crianças diagnosticadas com transtornos. Não sobram críticas, porém, ao uso indevido do medicamento, tratado por pais e educadores como uma ferramenta para controlar os jovens mais exaltados – tanto que o remédio é chamado de “droga da obediência”.

A psicóloga Renata Guarido é uma das críticas do uso do metilfenidato, tema de um estudo apresentado em sua dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo (USP). Segundo ela, muitos agentes escolares “estão crentes de que a variação no uso do remédio é responsável pela variação dos comportamentos e estados psíquicos das crianças.”

A banalização de diagnósticos e o uso irrestrito para tratar transtornos mentais não se restringem ao metilfenidato. A professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas (Unicamp) Rosana Onocko-Campos recentemente esteve à frente de um projeto que percorreu postos de saúde e Centros de Atenção Psicossocial (Caps) de Campinas. Descobriu que, nesses locais, o tratamento em saúde mental está reduzido ao uso de psicotrópicos.

“A pressão vem de todos os lados, inclusive da indústria farmacêutica, que tem interesse que se prescreva mais. Hoje vivemos numa sociedade em que temos que estar bem e alegres o tempo inteiro. Se ser saudável é isso, então tenho que estar o tempo inteiro intoxicada com algo”, critica.

Primeiro o diálogo, depois a prescrição

O último levantamento da Anvisa focado em remédios controlados, de 2011, mostra que quase metade destes medicamentos vendidos nas farmácias são para transtornos mentais e de comportamento. Conforme a agência, entre os 143 medicamentos de venda controlada comprados por meio de receitas entre 2007 e 2010, 44% figuram no rol de antidepressivos, ansiolíticos e estabilizadores de humor.

A tendência de embasar o tratamento psiquiátrico unicamente nos medicamentos é criticada por parte dos médicos. Ao mesmo tempo em que descartam o uso do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, na sigla em inglês), esses profissionais defendem um retorno ao tratamento clássico, focado nos anseios e temores do paciente, e não apenas em seus sintomas.

“Temos que deixar mais afinado o diagnóstico e propor a medicação só quando o paciente efetivamente precisar. É preciso, principalmente, conhecer a história da pessoa, entender como surgiu esse problema, o que ele está sentindo, o que ele pretende. E essas são questões que somente uma conversa técnica e afetiva vai esclarecer”, defende o médico psiquiatra Osmar Ratzke.

Contrassenso

Para o diretor-secretário da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Luiz Carlos Coronel, a popularização dos antidepressivos e remédios semelhantes também mascara um grave contrassenso: enquanto parte da população acaba medicada sem necessidade, outra parcela segue sem ter acesso ao tratamento. “O grande problema não é o diagnóstico exagerado, mas a falta de assistência na rede pública. Às vezes, se leva de três a cinco anos para se fazer um diagnóstico de depressão e, aí, essa pessoa já começa o tratamento como um doente crônico”, diz.

Atualizações do Manual da Psiquiatria têm relação íntima com o “boom” da indústria farmacêutica

Nos Estados Unidos, principal mercado consumidor de medicamentos no mundo e onde nasceu há 60 anos o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, na sigla em inglês), as discussões sobre a "hipermedicalização" têm chegado ao grande público por meio de jornalistas e médicos que colocam em xeque a eficácia dos remédios para tratar doenças como a depressão e o déficit de atenção. Em seu livro "Anatomy of an Epidemic" (Anatomia de uma Epidemia, sem lançamento no Brasil), o jornalista Robert Whitaker defende que estes medicamentos não são só ineficazes, mas prejudiciais à saúde.

Whitaker lembra que, assim que os efeitos colaterais de certo remédio aparecem, estes efeitos são tratados com outras drogas e, ao fim, o paciente acaba refém de um "coquetel de medicamentos para tratar um coquetel de diagnósticos". Tanto o jornalista, que recebeu prêmios pelo livro, quanto outros especialistas, têm como alvo principal a indústria farmacêutica, considerada uma das mais influentes no país.

De fato, a escalada da produção dos antidepressivos e ansiolíticos coincide com a elaboração da terceira versão do DSM, em 1980, quando, pela primeira vez, transtornos mentais passaram a ser diagnosticados a partir da presença de um certo número de sintomas relatados no manual. O guia passou a garantir que diferentes psiquiatras que atendessem o mesmo paciente propusessem o mesmo diagnóstico. Mas, por outro lado, também passou a justificar o uso em massa de medicamentos para atacar os sintomas descritos.



Fonte: Gazeta do Povo

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